
Caminhos poéticos da 'purinha'
Quase nenhuma entrevista, nenhum depoimento de historiador, nem texto explicativo. Em vez disso, uma suíte de frases, chistes, cantos, ruídos naturais e belíssimas imagens para inventariar os muitos papéis da cachaça no interior de Minas. Mais precisamente, na região do antigo Caminho do Ouro, por onde a colônia escoava a produção das minas até o porto de Paraty. No rastro dos índios, os brancos abriram a estrada. No rastro do ouro, a pinga alegrou os espíritos.
Pedro Urano poderia ter apresentado seu material, resultado evidente de boa pesquisa, em formatos bastante tradicionais de doc histórico. Mas o que chama atenção em Estrada Real da Cachaça é justamente a troca desse caminho fácil por veredas mais penetrantes e encantadoras. Todos os elementos parecem acorrer mais a um chamado poético que a uma convocação informativa. As lavadeiras cantantes de Milho Verde, os bebuns de cidadezinhas adormecidas nos vales, os fiéis de Morro Vermelho que banham o Cristo em cachaça, o garoto que tenta conduzir a equipe até um alambique e se perde no caminho – é com eles que o filme afina seu diapasão. O que poderia ser um dó-de-peito documental vira uma ciranda gostosa em tom menor, dado pela relação carinhosa dos mineiros com a “branquinha”.
O óbvio voa bem longe dali. As vozes (quase sempre fora de quadro) ganham ares de versos. As imagens de arquivo chegam calibradas pelo desejo de experimentação, fazendo com que passado e presente se encontrem nos canaviais, cidades e trechos de serra. Ava Rocha foi a responsável pela inspirada edição de som e imagem, marcada pelo impulso vertoviano (o trem, a essência do movimento no mundo, a realidade recriada no corte).
A escala em uma mina de topázio em Mariana, com digressões alegóricas em torno do turismo e do destino atual das pedras preciosas, cria uma “barriga” e um desvio temático menos interessante. O corpo oscila um tiquinho, mas nada que abale a estrutura nem o charme do doc.
Estrada Real da Cachaça, mais uma produção do bravo Tarcísio Vidigal, vem se juntar a um grupo de filmes que não cessam de revigorar a linguagem documental no Brasil. Falo de Joel Pizzini (500 Almas), Cao Guimarães (Acidente, Andarilho), Eryk Rocha (Pachamama), parentes que vêm imediatamente à lembrança diante da música doce e original que emana dessa estrada. Carlos Alberto Mattos
Nenhum comentário:
Postar um comentário