domingo, 19 de outubro de 2008

CACHAÇA no Festival de Locarno

Essa foi a primeira crítica publicada sobre o filme. Saiu no jornal CORRIERE DEL TICINO, um dia depois da projeção do filme no Festival de Locarno. Os gringos sacaram! 

Semana da Crítica

Benéfica embriaguez cinematográfica

“Uma viagem no espaço e no tempo. Uma viagem no imaginário de um país inteiro. Um documentário sobre o invisível”. Assim o diretor de cinema brasileiro Pedro Urano define o seu primeiro longa-metragem Estrada Real da Cachaça, assistido ontem em Locarno durante a Semana da Crítica. Propósitos excessivos para uma obra que pareceria, ao menos no papel, tratar de um tema marginal no que diz respeito aos grandes problemas que o “gigante sul americano” deve afrontar neste momento? De jeito nenhum. Pelo contrário, Estrada Real da Cachaça é a demonstração de que o cinema do real pode ser muito mais eficaz na medida em que se dirigir ao próprio sujeito de relance, sem uma preocupação didática, mas compondo um quebra-cabeça apenas aparentemente desconexo dentro do qual, no final, todas as peças ocuparão um lugar bem preciso.

Pedro Urano, que tem nas costas uma sólida experiência de diretor de fotografia e de operador de câmera, desfruta ao máximo a narração através de imagens, transformando o seu filme em um percurso com poucos pontos de referência concretos ao longo desta estrada construída a partir de 1697 pelos colonizadores portugueses para ligar as cidades portuárias do Rio de Janeiro e Paraty às regiões mineradoras do interior do país. Companheira de viagem de todos aqueles que, desde então até hoje percorrem esta Route 66 do ouro e da prata é a cachaça, a mais popular bebida brasileira, destilada da cana de açúcar. É ela a presença irrenunciável em cada cidade, entre mulheres e homens, jovens e velhos, mineradores e camponeses. É ela que esquenta o corpo no inverno e refresca a mente no verão, que desinfeta as estátuas dos santos e que funciona como ingrediente principal de qualquer poção mágica, ou, ao menos, assim se presume. Faz bem ao acordar e antes de dormir, quando se está doente, mas também quando se está muito bem. E é o tema de um número infinito de cantigas e canções que todos entoam em qualquer momento do dia.

O filme de Pedro Urano, porém, está bem longe de ser um hino ao alcoolismo ou um modo de ver a realidade através da perspectiva delirante da ebriedade etílica. Passo após passo (a câmera empunhada pelo diretor é em movimento perene, ou melhor, em perene avanço sobre trilhas, passagens e ruelas), descobrimos situações de pobreza absoluta, mundos que permaneceram em um estado primitivo, como aquele dos mineradores que com enxada e foice vão em busca do raro topázio da região. Uma exploração descontínua, pontual, animada por vozes e rostos sempre novos, enquanto a trilha sonora de Aurélio Dias cruza, sem solução de continuidade sonora autóctone, com os tantos rumores da natureza e das atividades humanas.

A única concessão à racional aproximação jornalística do tema, o cineasta brasileiro faz nos créditos finais, quando diante dos olhos do espectador se desenrola um mapa da Estrada Real que, pela primeira vez, nos da uma idéia (mas só uma idéia) da vastidão do território que atravessou. Estrada Real da Cachaça permanece assim impressa na memória como uma viagem irracional em um mundo dominado pela irracionalidade, uma embriaguez cinematográfica, que ao final não nos deixa com dor de cabeça, mas com... sede de saber mais.

Antonio Mariotti